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quarta-feira, 29 de maio de 2024

Abobado da Enchente

Viralizou pelas redes um video do psiquiatra Nélio Tombini, onde ele faz uma explicação lúcida e pontual sobre “Os Abobados da Enchente”. Segundo o psicoterapeuta, a expressão muito usada pelos gaúchos pode ter surgido depois da grande enchente de 1941. Seriam esses abobados da enchente, pessoas que perderam mais do que sua humanidade foi capaz de suportar e seguiram a vida como verdadeiros zumbis que já não atendiam mais à rotina usual do cotidiano. É uma boa explicação, ou pelo menos faz sentido.

Digo isso porque senti parte dessa sensação quando na madrugada, manhã e tarde daquela quinta-feira, depois de 20 dias de dilúvio, onde tantos perderam tanto e outros tantos se foram com essas perdas, a chuva voltou impiedosa, depois de uma quarta-feira de sol alvissareiro e até calor. Ao fim daquele dia infernal, onde a enchente voltou de uma forma avassaladora, os gaúchos que haviam iniciado seus trabalhos de limpeza e retomada da vida normal, viram o lixo depositado nas calçadas -por sugestão dos gestores públicos- serem arrastados pela força das águas.

As cenas foram intensas, tristes e lembrei que, de acordo com a bíblia, Deus observou ter a humanidade se tornado extremamente corrupta e decidiu enviar um grande dilúvio para destruir toda a vida no planeta, exceto Noé, sua família e um casal de cada espécie animal. Então, choveu durante 40 dias e 40 noites, e as águas cobriram toda a superfície da Terra, até mesmo as montanhas mais altas. Todos os seres vivos fora da arca pereceram. Após 150 dias, as águas começaram a baixar e a arca repousou sobre os montes de Ararat. Noé soltou um corvo e uma pomba para verificar se as águas haviam baixado o suficiente. Quando a pomba retornou com uma folha de oliveira no bico, Noé soube que era seguro sair da arca. Deus então fez uma aliança com Noé, prometendo não mais destruir a Terra com um dilúvio, e o arco-íris foi estabelecido como um sinal dessa promessa. Isso já faz tanto tempo que talvez o todo poderoso tenha se esquecido do trato e decidiu começar mais uma vez. Começando pelo Rio Grande.

Embora o dia em que escrevo tenha amanhecido dentro de uma gigantesca nuvem -e o dito popular conta que “cerração que baixa, sol que racha”- tenho a impressão de que a chuva não mais há de nos abandonar. Parece que estamos fadados a viver num mundo semelhante ao dos replicantes do filme Blade Runner, onde a chuva era parte permanente do cenário. E a pomba em nosso cenário não é a da narrativa bíblica que chega com um ramo de oliva, mas aquela solta pelo replicante Roy Bati na frase final do filme: “…lágrimas na chuva”. Me nego a escrever a frase seguinte. Virei um abobado da enchente

segunda-feira, 13 de maio de 2024

O Verão dos Aracuans

Ave que conheci no interior de Santa Catarina, mais precisamente no Gravatal, no sítio de um produtor raiz, onde cheguei procurando por mel nativo. Todos, na região, indicavam aquele produtor, um alemão bem humorado, que cuidava com denodo e carinho de seu torrão. Era verão e conversávamos à sombra, quando aquela ave marrom, quase do tamanho de uma galinha, pousou no quintal. E por ali ficou, como se tivesse interesse em nossa conversa. O alemão disse que ele vinha todas as tardes e ficava perambulando no pátio, como se fosse a própria residência, comia alguma coisa, fosse restos da quirera de milho, deixada pelas galinhas, ou fruta, depois voava, retornando só na próxima tarde.

Moro numa região bastante arborizada da Zona Sul de Porto Alegre. De meu “home office” olho para um coqueiro, que vive cheio de caturritas que adoram a oleosidade dos coquinhos, uma laranjeira carregada de frutos amarelando e que, a partir do frio que ora chega deve aprontar de vez a safra da fruta. A seu lado um limoeiro, daqueles limões bergamota e disputando o espaço com ele um pé de maracujá, cujos frutos geram batidinhas aqui em casa, pois o dono do terreno sempre me presenteia sacolas da fruta. Ao fundo, árvores mais frondosas; não reconheço a maioria, mas descortino guapuruvus e até uma araucária já adulta, que deve ser macho, pois jamais vi uma pinha sem seus galhos. Ela se inclina sobre a avenida Nonoai… imagina você retornando daquele passeio dominical pela Zona Sul da capital gaúcha com a família e, de repente, cai uma pinha com mais de 5kg no parabrisa da sua possante? Ok, eu adoraria que ela fosse fêmea e desse pinhões, mas o estrago seria grande. Melhor que seja macho mesmo, pois seus estróbilos secos são melhores que gravetos para acender a chama no fogão a lenha que me impede de congelar no inverno.


Acho que conheço razoavelmente a natureza no entorno. Meus leitores devem lembrar do episódio da calopsita que resgatamos, que eu descobri ao ouvir um canto diferente das aves que aqui gorjeiam. Entre pombas, papagaios, íbis, joões-de-barro e bem-te-vis, tem também um casal de urubu que aninhou na caixa d’água do teto de um edifício a meia quadra daqui e até um carcará solitário. Uma calopsita cansada não teria a menor chance, contra predadores desse porte. Pois neste verão ouvi outro canto, que me estranhou. Chamar aquilo de canto é boa vontade minha: é um escândalo, um estardalhaço. Sempre ao amanhecer. Até que um dia, estou sentado ao pé da cama, olhando para a frondosa árvore que cobre de sombra o pátio da terceira casa à frente da janela do meu quarto, quando ouço o escarcéu. Presto atenção naquela que, até então era pra mim a árvore dos bem-te-vis e vejo um par de bichos imensos saltando por seus galhos e a ave que mais fazia algazarra alça voo em direção a outra, na quadra de baixo, de onde vem estardalhaço igual. Acreditem: tem outra família de aracuans a pouco mais de uma quadra daqui. São aves muito territorialistas e marcam seus territórios no grito… e que gritedo.


Semana passada, durante a breve estiada neste dilúvio que causa a maior tragédia da história do meu Rio Grande, aproveito pra caminhar e, qual não foi minha surpresa, quando ao chegar na quadra de casa, ali no fim da avenida Teresópolis, rasga o vento a minha frente, outra dessas aves marrons, em direção ao lado oposto da Perimetral, entranhando-se em uma imensa árvore coberta de folhas, onde notei outra família desses bichos. Ao decretar o fim do verão, as tropas do General Inverno afogam meus irmãos e massacram meu torrão nativo, numa guerra ímpia, injusta e sem precedentes em minha já não tão curta vida neste sul de mundo. Este ficará eternizado em minha memória como “O Verão dos Aracuans”.