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sábado, 25 de dezembro de 2021

Aventura de Natal

Natal é feito de lembranças. Da infância e das alegrias em família, das mentiras dos mais velhos, das cores cheiros e sabores à mesa, do bebericar furtivamente do copo de algum adulto desavisado, da tonturinha. Todos temos boas histórias de Natal pra contar.

Eu, por exemplo estava nas minas, em meu período de garimpeiro. O casamento acabara naquele ano e, pelo primeira vez em muito tempo, não tinha família a minha volta. Fui pra dentro de um buraco pra esquecer de tudo, enquanto o tempo foi passando. Depois do almoço as pessoas já não retornavam à lida e, cada um com seu cada qual preparavam as festas em família.
Decidi que não ficaria sozinho, pois seria um tanto deprê. Voltei ao hotel, onde só restava a família proprietária, tomei um banhão, vesti roupa de domingo e botei o pé na estrada, rumo a Chapecó, onde pelo menos eu conseguiria ver gente. Menos de 30km depois reparo que o mostrador do termômetro do jipe acusa sobre-aquecimento.
Parei e esperei o carro esfriar e depois dirigi cautelosamente até Planalto, onde havia postos de serviços, para trocar os líquidos de arrefecimento. Feito isso me pus a passo e, na saída em direção a Nonoai, os índios colocaram crianças no meio da estrada, usando-as como barreira humana. Eu, já acostumado com os achaques daqueles caigangues paraguaios, sempre tinha moedas e balas de menta no painel e console pra ofertar. Não contava com o nervosismo do motorista do Corcel a minha frente, que em vez de parar, se atrapalhou e terminou por tocar o carro em cima dos indiozinhos, deixando o carro morrer, ato contínuo. Foi o que bastou para uma horda de caigangues embriagados surgirem de trás das macegas à beira da estrada brandindo bordunas e facões. O próximo veículo era o meu e eu sabia que tinha muito álcool naquelas cabeças silvícolas para eles discernirem o joio do trigo e me arranquei numa estratégica saída pela esquerda
Deixei a mente apertar o acelerador ao limite da tábua serra acima, sem dó nem atenção para o termômetro que insistia em tilintar seu alarme. O problema de aquecimento não eram os líquidos e voltara a se manifestar. Nem pestanejei: seria trucidado se ali ficasse e me fui o mais distante possível. Até que o motor fundiu, meia-dúzia de km depois. Fim de tarde, fim de linha para quem antes só queria ir até a cidade, ver gente e tomar um porre. Estava eu no meio de duas reservas indígenas, com meu jipe fundido sendo pedido pelos sinais de fumaça. Preciso dizer que estava em área fora de serviço de minha operadora de celular?

A noite caía e eu ali parado, às margens da RS 406, entre duas reservas de índios que pediam meu escalpo. Subitamente, do nada, um carro na estrada, em sentido contrário, encosta e o motorista pergunta: “precisa de ajuda?” A mão amiga na hora necessária fez-se presente uma vez mais em minha vida. “Sim, se o amigo tiver um celular que pegue aqui me ajuda muito”, respondi ao anjo da guarda. Ele fez o comunicado pra dentro do carro, onde se amontoavam 7 pessoas e respondeu que o filho tinha sinal. O guri, então desceu e me alcançou o telefone, com o qual imediatamente liguei para Chapecó solicitando socorro à cavalaria. Agradeci, desejei Feliz Natal e já estava voltando para o outro lado da estrada onde aguardaria o reboque, quando meu anjo da guarda determinou: “pega tua mochila e vem conosco”. Tentei retrucar, mas ele definiu: “vens conosco. Sou da região e sei que se os índios te pegam aqui, incendeiam teu jipe, contigo dentro”. Não sei se era a voz da razão, mas pareceu ser e me fui com eles, em meio a outras 7 pessoas num Monza.
Voltamos a Planalto e nos dirigimos à residência do contador local, que nos esperava com muita alegria, cortando cavacos para fazer fogo na churrasqueira. Fui me apresentar, ao que ele atalhou: “senta naquele banco, pega cerveja ali e relaxa. Em seguida vou ouvir tua história.” Ainda tentei me candidatar para cortar a madeira, mas ele encerrou de vez o assunto: “em minha casa visita não trabalha”. Pronto; sentei e bebi.
Cervejinha vai, cervejinha vem e eu, que já estava esquecendo meu infortúnio vi chegar uma linda morena, vinte e poucos anos e pernas kilométricamente delineadas pelos shorts que vestia. Foi quando meu anfitrião sentou-se a meu lado e comentou que era a sobrinha que chegava do Pará, onde fazia academia militar da Marinha; era Capitã de Mar e Guerra, mas naquele momento ele estava interessado na minha história, a qual lhe contei com todos os detalhes. Ouviu atentamente e comentou que deixar o carro e esperar pelo socorro em sua casa foi a decisão mais acertada possível e reiterou o desejo para que eu me sentisse em casa. O álcool já estava fazendo isso por mim e me aproximei da morena, que a essas alturas já parecia uma “Bond Girl”. Já cheguei dizendo o quanto eu estava maravilhado com sua beleza e que estava mesmo precisando encontrar porto seguro em minha vida, quando ela colocou seu copo em minha mão, abriu a bolsa que trazia sobre o braço e mostrou a 45: “muito obrigado pelos elogios, mas sou oficial da Marinha Brasileira, não tenho tempo para xavecos e esse assunto termina aqui”. Sorriu, fechou a bolsa, pegou o copo e deu meia-volta nos lindos calcanhares. O que eu trazia nas calças começou a vibrar; era meu celular chamando. O socorro havia chegado. O jipe e minha dignidade estavam salvos, bem a tempo. O celular do filho de meu anjo da guarda valeu como o próprio Rintintim.
Agradeci a todos me despedi, quando ganhei um vinho de produção própria de meu anfitrião e me fui tomar um porre em Chapecó, naquela noite em que eu bem merecia uma Missa do Galo.

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