(sugestão de trilha musical, De Que Me Sirve El Cielo, Omar Chaparro)
Estávamos em Las Vegas para o congresso anual da NATPE - National Association of Television Program Executives, no maior hotel local, o MGM Grand, ao todo 22mil associados presentes. Foram 3 dias intensos, visitando cerca de 600 estandes por dia oferecendo programas de TV produzidos aqui e conhecendo produtos do mundo inteiro. Muito trabalho, pois ficamos hospedados o mesmo hotel onde a feira ocorria, então era acordar, tomar café da manhã e mergulhar no evento, até à noite. Um ambiente onde se é obrigado a falar todas as 7 línguas que aprendeu e a raciocinar na velocidade dos negócios.
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Fila de carros na fronteira dos EUA: vendedores e miguelitos |
Ao fim de 3 dias exausto de corpo e mente, precisávamos trocar de ares, sair do hotel, ver outras gentes e tal. Encontramos um Pub de esquina, com cerveja artesanal e boa comida. Os amigos fizeram seus pedidos e eu fiquei quieto. Eles estavam preocupados; jamais haviam me visto quieto. Fizeram os pedidos por mim e, quando chegou a cerveja, brindei com eles, mas não bebi. Ambos se olharam e concluíram: “é grave… o Poli não beber a cerveja de intenso tom avermelhado, servido por uma adorável bartender, é grave.” Quando chegou a comida, tampouco toquei nela e quieto segui. Ao voltarmos para o hotel, os amigos foram ao Cassino beber a saideira e eu fui dormir.
Quando acordei os amigos já estavam arrumando as malas; decidiram enquanto eu descansava que a troca de ares tinha de ser mais ampla. Era hora de abandonar Vegas. Lotamos o porta-malas do Buick e bora pra California. Como eu estava mais descansado, assumi o volante enquanto Valerio e Beto colocavam o sono em dia. Cinco horas depois atingíamos o Km 0 da Route 66, que inicia em Beverly Hills. De lá nos dirigimos ao mar e descolamos um lugar pra passar a noite em Santa Monica. Ainda saímos para um rango e encontramos um local chamado Barney’s Beanery que, como sugere o nome, serve o bom velho feijão amigo, desde 1928. Foi minha primeira refeição em 2 dias e caiu mto bem aquele chillibeans. Mesmo assim surpreendi os amigos, pois mais uma vez não consegui beber cerveja; só entornei um uísque cawboy, afinal estava em um saloon da época do velho oeste.
Acordei antes dos outros e fui caminhar pela praia. Encontrei um restaurante nas areias que estava abrindo. Entrei e sentei ao ar livre e pedi um prosaico Mingau de Aveia. O mexicano que me atendia olhou pra mim e comentou: “situação tá complicada, hein cumpa?” Assenti com a cabeça, pois seguia quieto e ele completou: “esse mingau vai te reconstituir hombre!”
Comi, paguei e retornei ao hotel, onde os parças já jogavam as bagagens outra vez no porta-malas do Buickão cantarolando: “PA-RAN-PA-RAN-PAN-PAN-PAN”. Esta senha eu conhecia e voltei a sorrir: “TEQUILA!” Duas horas depois deixávamos os EUA onde deixei meu mau humor ao atravessar a fronteira. O Sol se pôs à nossa direita, sobre o Pacífico e anoiteceu ao chegarmos em Tijuana.
Não existia GPS nem tinha um livrinho ou mapa com sugestões de onde ir, até que deparei com uma delegacia de polícia. Parei no meio da rua, deixando o carro ligado em frente ao Distrito, onde entrei e me deparei com um cenário igual ao antigo programa do Ratinho: uma família de um lado, outra do outro. Todos gritando e um policial no meio tentando impedir que partissem pras vias de fato. De um lado um rapaz, do outro lado uma menina com olhar de abandono. A mesma história de sempre. Dei a volta por todos e me dirigi ao policial dizendo que era brasileiro e precisava que ele me desse uma indicação de onde ir. Ele distencionou e sorriu, olhou para aquele bando de barraqueiros e disse: “se matem entre vocês que eu tenho coisa mais importante pra fazer”, e saiu dali me carregando pelo braço. Perguntou se eu estava de carro, respondi que sim e parafraseou o super herói mexicano: “então SIGAM-ME OS BONS!” Saltou dentro de sua possante viatura, ligou os High Lights e enfiou o pé no acelerador, deixando pra trás aquela confusão insana e mergulhando na noite de Tijuana, passando por todos os sinais fechados, comigo em sua cola, até que pára diante de um buteco chamado “MEXICO LINDO” -sim o próprio trocadilho. Apontou para lá e nos desejou felicidade, apertando fundo o acelerador de sua possante e nos deixando pra trás.
Vocês lembram do bar onde se passa a trama de “Um Drink no Inferno”? Era o próprio e ali bebemos nossas primeiras tequilas no solo pátrio da bebida. Conversamos com os circunstantes -não a Salma Hayeck não apareceu dançando com uma cobra, nem Los Lobos era a banda da casa. Então descobrimos que no Centro de Tijuana tinha uma espécie de bairro boêmio e pra lá nos fomos. Deixamos o Buick num estacionamento onde parecia haver alguma segurança para nossas bagagens e descemos a avenida em direção à barlândia. O cenário lembrava a av. Emancipação, em Tramandaí, no auge do verão, com um bar do lado do outro e pencas de gente indo de um para o outro, com a diferença que em Tijuana chega a ter 3 andares, com um bar diferente em cada um, num espaço de 3 quadras. Fomos até o fim daquela sequência de botecos e subimos a escadaria do último, de onde seguranças tiravam pelos pés uma cliente apagada, levando-a até a calçada, enquanto a cabeça dela picava de degrau em degrau. Pareceu ser um bom local para tomar umas.
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Momento "Rodriguez mexicano" em Tijuana |
A noite de sábado mais louca do planeta -não lembro qual publicação internacional deu esse título à Tijuana- é incendiária. Os americanos residentes em Santa Barbara atravessam a fronteira em busca de mulheres de verdade e as calientes mexicanas adoram a possibilidade de um deles se enamorar e a levar para o outro lado. O mesmo vale para as americanas que atravessam a fronteira em busca de homens do sexo masculino. Isso tudo misturado a maternais doses de tequila e o “Saturday Night” vira algo memorável. As garçonetes vestem cartucheiras carregadas com “shots” e carregam garrafas de tequila em coldres. Se o cliente pede um tiro daquilo, elas jogam tua cabeça no balcão mais próximo, e despejam tequila com uma mão e energético com a outra, goela abaixo da pessoa, até regurgitar, para daí tapar a boca com um pano e chacoalhar a cabeça até o cérebro entrar em órbita. Não é para os fracos, como a menina que vimos sair arrastada em nossa chegada.
Lembrei desse cenário porque venho aproveitando a quarentena para assistir comédias espanholas. O Netflix não tem essa categoria, mas “filmes em língua espanhola”, em cuja aba do cardápio descobri comédias colombianas e ontem encontrei uma mexicana, divertidíssima, chamada “Como Caído del Cielo” e conta a história do cantor Pedro Infante que é mandado de volta do purgatório para reatar seus laços soltos, deixar de lado a canalhice e conseguir fazer a felicidade de uma -uma só- mulher. Seu espírito reencarna no corpo de outro cantor, que imitava seu estilo e interpretava seu repertório com outros 2 “Mariachis” e que estava em coma há meses bem no momento em que mandam desligar os aparelhos que o mantinham respirando, por falta de $$$. O artista é interpretado por Omar Chaparro, que passa o filme todo vestido como Mariachi e foi por isto que lembrei do episódio ocorrido em Tijuana.
Depois daquela desenfreada bebedeira de tequila, o dia seguinte foi complicado. Ressaca mexicana não é um passeio no parque. A manhã dominical foi densa como a neblina em Porto Alegre. Difícil até de respirar. Tentamos passear no Brique local, mas não havia sequer humor para isso. Não restava muito a fazer senão começar outra vez. Encontramos um botecão daqueles onde nem os vilões de “Um Drink no Inferno” cantariam de galo. Até os cães andavam armados ali. Sentamos e esperamos por atendimento. Lá pelas tantas chega uma tiazinha vestida igual à “Dona Florinda” e quando pedimos uma cerveja ela foi reta: “bebida só se pedirem comida”. Só faltava essa, então perguntamos o que tinha para comer e ela: “sopa de birria”. Nem sabíamos se tratar de um pato típico feito com carne de cabrito, pois nos foi servido em pratos de plástico azul, semi-transparente. Baixamos as cabeças tentando encarar a gororoba e quando as erguemos novamente, onde estava o Valerio? Ele tem essa capacidade transmutacional de desaparecer por alguma fenda dimensional, vez em quando, mas sempre volta.
Dessa vez voltou acompanhado de 3 Mariachis e, ao chegar com eles à mesa pediu em alto e bom som a atenção de todos os presentes. Comecei a abaixar pra me esconder embaixo da mesa, quando notei que Beto fazia o mesmo, enquanto seguia o discurso: “queria dedicar a todos ustedes una canción de my infância… la Canción Mixteca”. Dito isso e os músicos começaram a tocar ante o estarrecimento de todos os comensais e Dona Florinda. Encerrada a introdução melódica e quem começa a cantar, para espanto de todos, mas não nosso, era o nosso amigo: “tan lejos que estoy del suelo donde he naciiiido…” foi quando começou o tiroteio. Não eram tiros de uns contra os outros, mas tiros ao teto, de festejo. Todos se emocionaram, gritavam e uivavam, como bons mexicanos. O cantor Mariachi fez coro ao nosso amigo e todos saímos abraçados… e vivos do local.
Dali rumamos ao Buick e bora voltar aos EUA, que o finde já deu o que tinha que dar. Só não sabíamos que, ao chegar na fronteira enfrentaríamos o martírio de algumas horas parados na tranqueira, pois todos os carros e documentos são verificados por policiais aduaneiros e farejados por cães treinados. No local existe um bom número de vendedores, especialmente de alimentos. E miguelitos, que são melecudinhos mexicanos tentando achacar algum dos “gringos”. Tentei contrabandear um para o território americano, porque naquele calor e com o motor desligado estávamos com as janelas abertas quando um miguelito colocou as mãos sobre um das janelas do Buick. A fila andou, liguei o carro e o ar condicionado e fechei as janelas. O miguelito ficou dependurado. Os policiais viram a cena e foram chegando às gargalhadas. Pediram nossos passaportes e, quando viram que éramos brasileiros passaram a rir ainda mais e ainda tocaram um cão farejador embaixo do miguelito que gritava: SEÑOR SEÑOR..!” A poucos metros do ingresso na terra do Tio Sam abri a janela e soltei o miguelito que saiu correndo e não foi mais visto.